sexta-feira, 14 de maio de 2010

Móvel



 
Mobilia 1, 2009

Às vezes não é simples fazer arte como pode parecer à primeira vista. Já disse que para alguns é uma terapia, para mim é algo muito sério, passa longe de ser um lazer.
Na época em que fiz este, estava há muito tempo sem desenhar, fosse por falta de tempo ou de inspiração, termo que anda meio em desuso e sofrendo preconceito. 
Não considero que se inspirar seja um processo em que a gente fica olhando para o nada e de boca aberta, esperando surgir uma ideia encantadora.  Não cai do céu a imagem para você pintar ou desenhar. No meu caso, então, a imagem ou ideia inicial para esse desenho estava bem abaixo do céu e eu não estava calmamente aguardando por ela, mantinha um papel em branco diante dos meus olhos e empunhava uma lapiseira. Estava tensa, não com medo do papel em branco, mas havia uma necessidade de recomeçar a fazer arte, como se não fosse naquele momento eu não pudesse mais voltar a fazer. Foi preciso desviar o olhar para cima, em direção à porta da sala, e ver o telhado do barracão do vizinho.
Aquela forma já andava me rondando, não sabia onde ela iria entrar num desenho meu. A  forma me atraía e sabia que não faltaria oportunidade. Não me proponho explicar por que  a forma do telhado ou essa da parte superior do desenho tem uma "influência" sobre mim, não sei direito o que acontece, sei apenas que para muitas pessoas ela não tem nada de especial. 

Telha do tipo Kalheta

Depois de inspirada, me pus a desenhar. Não houve preocupação em reproduzir fielmente o telhado do vizinho; isso é visível, a telha forma forma um desenho triangular, o meu uma curva. E logo prolonguei linhas de cada lado e coloquei pés como fosse em um móvel. 
Retrabalhei o desenho feito com grafite, sempre faço isso e aqui usei uma mina sépia Koh-I-Noor nos contornos e, na seta, a mina sanguína. 
A seta é um elemento que volta e meia aparece nos desenhos. Outro mistério, não uso exatamente para sinalizar mas como elemento estético. No desenho em questão talvez  indique (?) que se pode sentar ali, porque me lembra uma cadeira. Não tive intenção que se parecesse com uma. A imagem me agrada por ela mesma, não fico pensando se ela evoca um objeto do mundo real, uma cadeira. 
É, coloquei o título Mobilia. Corro o risco de limitar a leitura do espectador, não é? Vai ficar achando que não daria para sentar numa geringonça dessas. Pode não ser confortável de fato. 
A ideia de móvel surgiu depois do desenho pronto. Ficou mais forte por causa do que fiz a seguir, depois de uns dias, usando as mesmas cores e materiais e aí, sim, pensando em móvel. Será um armário?

Mobilia 2, 2009

Não sei se é um armário porque o que estava me interessando era que as duas imagens tivessem um parentesco: repito os pés*, a imagem da onda que foi deslocada para o lados, e ganhou uma pontinha no lado esquerdo. É um jogo com formas e cores e detalhes. 
Mobilia 2 me foi possibilitado pelo desenho anterior. Adoro quando isso acontece, a conversa entre imagens, e eu me ponho a  experimentar texturas, como fiz neles, observando diferenças. Tenho paixão pelos materiais e as texturas dos papéis, se acrescentarmos mediuns ou colarmos um papel obtemos efeitos diversos



Nova falta de tempo me fez parar com o que pretendia se tornasse uma série chamada Mobilia. Claro que ela pode ser retomada, não sou de fases, posso voltar a ela sem compromissos com normas ou termos que tentam apreender, aprisionar ou dar conta do comportamento de um artista. Faço muitas imagens ao mesmo tempo, parece que sou muitas e cada uma faz um tipo de imagem.
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* Pés não são uma característica exclusiva desses desenhos, no Experimentando eles aparecem e o desenho é bem anterior.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Vestido amarelo

 
 
Girl in a yellow dress, 1929-1931*


Ontem entrei num sebo e já estava disposta a ir embora por não ter achado nada que me interessasse, mas não conseguia sair.  Ia e voltava às prateleiras e mesas cheias de livros desanimadores, tanto quanto o senhorzinho e sua esposa, ambos sentados no fundo da longa sala retangular, não sei se me observando ou assistindo ao escurecer do dia.
Já havia estado ali outras vezes e conversado bastante, ele até me contou sobre sua vida profissional antes da aposentadoria. Eu não estava a fim de prosa, então fiquei procurando algo em silêncio. Claro, quando cheguei cumprimentei e  me calei. Minha cabeça anda cheia de questões sobre arte, o silêncio vinha disso.
Ao me dirigir mais uma vez para o lado esquerdo do espaço, finalmente vi a sessão de artes. Mui modesta. 
Matisse, li o nome na capa do pequeno livro. Em poucos segundos estava com ele na mão.
O antigo dono foi Edmond S... e a data junto da assinatura é a mesma da edição, 1953. Nome e data escritos numa letra inclinada, cujo sobrenome não pude ler direito. Ele deve ter comprado nos Estados Unidos logo que foi publicado. Quem sabe, morava em Nova York.
Livro de bolso, com o preço de 50 cents. Isso é que é ter acesso à cultura!
Matisse, ele é o que importa aqui. É um dos meus amores, há tempos aprecio sua obra, seus escritos. É dele o quadro acima (fico devendo o nome em francês). 
Não usaria um vestido amarelo, eu acho, mas me chamou atenção a imagem imediatamente, tanto que foi o que me motivou a comprar o livro por 10 reais já descontado um real pela cortesia do senhorzinho.
Eu demorei a achar o dinheiro, ele gentilmente me propos pagar num outro dia, talvez minha presença fizesse bem naquele lugar somente ocupado pelo casal, então minha volta seria boa. Bonito gesto dele porque de confiança em mim. Mas eis que a nota aparece numa de minhas carteiras e uma repentina disposição de falar, de contar que desenho e as imagens de obras de Matisse faziam crescer uma vontade de pintar.
O livro é do crítico de arte Clement Greenberg. Eu conheço este nome por conta do seu papel na vida artística de Jackson Pollock, para bem e, o que aparece no filme Pollock, para o mal. 
As descrições ou leituras breves deste quadro e também de Large interior in red foram decisivas para a compra. Nelas Greenberg fala claramente sobre o que vê com olhar atento e não resisti porque é justamente o assunto que anda me tomando várias horas do meu dia.


A certa altura do texto, ao se referir ao quadro Large..., Greenberg nos pede para notar como figura e fundo estão no mesmo plano de cor (color plane). Tão óbvio e se não pararmos para pensar, olhar, não vamos ver. Certamente esse elemento deve ser notado, e confesso que gosto da imagem sem que o fato me chamasse a atenção, mas está ali o tempo todo, sempre estará. É tudo vermelho.** 
Sobre o quadro da moça com vestido amarelo Greenberg aponta para  linha aparente, que tanto me interessa. 
Matisse parece ter apreciado o tema do vestido amarelo pois o retoma numa gravura em metal na técnica de água-tinta em cores


Marie-José en robe jaune, 1950




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* Fonte: Matisse, Clement Greenberg, New York, Abrams, Pocket Library of Great Art,1953.
** Vermelho não por igual mas não houve preocupação em representar o real. Matisse não faz distinção formal  de parede e piso, não faz uso de perspectiva para dar impressão de profundidade da sala. Na verdade, se observarmos mais um pouco,vamos notar que o vermelho é usado também na mesa à direita e no quadro em um tom mais escuro, isso eu digo e me arrisco, quem disse que a reprodução se presta a afirmações desse tipo?